quinta-feira, 27 de outubro de 2011

I wanna be a loser

Tempo acelerado, quebra nas convenções, época deselegante em que nada se basta sutil. Os amores vão num clímax irrefreado, explodem, gritam, esfregam-se felicidades plenas pelas redes sociais. Os desafetos se publicam e se espetam violentamente, sem ironias, e a atmosfera segue carregada, atulhada, sem espaço para transitar entre os objetos e eventos.

Chorar três vezes na semana (sempre às escondidas), por motivos diferentes e igualmente angustiantes. Engolir a dor junto com maços de cigarro. Fazer exercícios físicos até que toda a mágoa saia pelos poros, no suor (ou até que se conquiste o corpo perfeito). São tarefas que têm se tornado comuns, já realizadas com destreza.

Parar, contemplar, respirar são ações proibidas. Ou para os fracos. A exigência é que se esteja sempre em movimento, e o acúmulo de trabalho é motivo para orgulhar-se: só assim sobra dinheiro para o analista. E há que se mudar de um para outro, antes que se descubra qualquer coisa sobre si.

Fotografar não é um treino para os olhos, mas uma maneira de reter o instante. Milhões de fotos de uma mesma coisa, facilmente apagáveis, editáveis, melhoráveis, contanto que isso não tome muito tempo. Não há espaço para o borrão, para o imperfeito, para menos do que a glória.

Acordar na segunda-feira planejando a terça, e na terça planejando a quarta, até que a semana se tenha ido sem que você tenha se dado conta de si. Criar um novo espetáculo, bater a meta, produzir um artigo, ver o filme sobre o qual todos estão comentando. Tudo para “estar por dentro”, participar da roda dos falantes mudos, dos ouvintes surdos. Todos extrema e integralmente solitários.

Conquistar o impossível, o mais gostoso, o eleito, o seu par. Estar sozinho a dois, a três, em muitos numa festa onde se deve sorrir e participar de todas as brincadeiras engraçadíssimas, mesmo que isso inclua se ferir, ou ferir o outro.

Beber, sempre com um energético a tira-colo, para não cair. Ou beber até cair, na falta de uma anestesia. Mas já com os gatorades e similares na geladeira porque amanhã – ainda hoje – você tem que estar inteiro. Da mesma forma, cheirar, injetar, engolir, mas nunca sem um antídoto altamente eficaz, capaz de reverter quaisquer eventualidades.

Andar depressa, de carro, a jato, ocupar os finais de semana com atividades lúdicas porque também está estabelecido que se deve rir. Ou dormir durante todo o tempo livre, porque nos torna mais competitivos no decorrer na semana de trabalho.

Entupir-se de café, de açúcar para combater a falta de sexo. Transar, muitas vezes em uma só noite, sem que haja uma em que ambos se olharam nos olhos. Tomar remédio para não brochar, ter sempre um “plano B” para o caso de brochar. Beijar tantos quantos possíveis numa noite, e ter o cuidado de não guardar os nomes. Dizer sempre que está atrasado, isso dá status.

É muito importante que se receba, distribua e valide prêmios, bustos, condecorações, certificados, títulos e outros papéis e objetos que atestem a importância daqueles que concordam contigo. Burocratizar, chancelar, carimbar para impedir o fluxo e que se criem os subornos e ilegalidades.

Ser para sempre lindo, jovem, entusiasmado, ritalínico, prozaquiano, lexotânico e o que mais for preciso para preserva-se no Olimpo. Esquecer-se, rápida e cuidadosamente. Nunca ser taxativo, e desdizer-se conforme convier. Esquivar-se das discussões e manter-se do lado mais forte. Não ter ideais, nem escrúpulos, e fazer doações periódicas para ações beneficentes. Adotar um pet, enchê-lo de mimos e dar sempre mostras homéricas da pessoa boníssima que você é.

domingo, 18 de setembro de 2011

Ser velho



Tem vezes em que não dá para esquecer de que se é velho. E não tem exatamente a ver com idade, mas com as coisas vividas. Você não consegue ficar trocando de música a cada meio minuto, em busca da mais divertida que, invariavelmente, vem a ser a mais trash. Você não consegue nem permanecer na festa. Nem ficar "uber" entusiasmado com qualquer coisa menos que esplêndida. E você se dá conta de que trepar muito e ecleticamente só faz bem pro ego pela duração de um miojo. Depois faz um rombo danado na existência. Pior: você percebe que relacionar-se, passar anos juntos, ter filhos e os cambaus, parece cada vez mais distante. Porque então você já aprendeu que isso tudo exige ou uma renúncia imensa, ou uma coragem que já te falta.
Nas primeiras vezes que você preferir em casa, você vai se estranhar. Depois vai se reconhecer, e ficar em paz com um bom livro ou filme. E, por favor, esqueça a imagem idealizada de macho ou fêmea autossuficiente. Diariamente, nas contas da casa, nos cantos por limpar, nas compras por fazer, você vai ver que é só uma boa imagem. Dentro de você vai crescendo um treco seco e anestesiado. Para alguns fica até charmoso, principalmente se vier acompanhando uns fios de cabelo grisalhos.
A vantagem é que as viagens, os vinhos, as músicas serão só suas. Mas também não se anime tanto porque, na verdade, raramente você vai encontrar com quem dividir. E se encontrar, antes de chegar a esse encontro, vai precisar daquela paciência, que já anda escassa. Por isso você vai tender a preservar as amizades antigas.
Fora isso, tem as manias. Querer as coisas do seu jeito, ficar obsessivo com outras. Todas para o seu conforto de velho. A paz na velhice reside em, das meias à poltrona, encontrar os dispositivos que te fazem mais a vontade com ela.

domingo, 28 de agosto de 2011

Inominável



São três: Cirene, Dafne, Lakshmi. Uma é todas, e todas são a mesma. Elas tecem, fiam, cozinham e, sobretudo, esperam. Constroem muros, fortes, paredes, mas se dedicam mais às janelas, portas, pontes. Desconhecem o ofício de erigir em linha reta ou com materiais sólidos. Estes são para os homens, todos e um.

Vagam pelo mundo desde o primeiro suspiro de um coração partido, e têm a sina de continuar acreditando. Perseguem o objetivo dos ingênuos, tão simples quanto irrealizável. Aqueles que assistem à sua jornada diriam que dançam, ou fazem qualquer coisa harmoniosa com seus tentáculos.

Não se enxergam senão através de retinas alheias, por isso passam o tempo sagrado diante dos espelhos. Confundem mais do que esclarecem e quando choram o vento estaca e as águas fazem pequenos círculos.

Moram em todos os corpos, porém devem abandoná-los, migrando de tempos em tempos, sob pena de sua fome devorar o mundo. Já aconteceu mais de uma vez, e elas tiveram de parí-lo. Como se sabe, a dor de externar é maior que a de engolir. De tão intensa, elas se metamorfoseiam em esgares até o irreconhecível.

São quem recolhe os corpos nos campo de batalha, escondem os avessos e velam, anônimas, o sono dos aflitos. Todos os serviços imperceptíveis sem os quais se instalaria o caos. São irmãs do caos e o disfarçam ora em vasos de flores, ora em pingentes sobre o peito.

Ninguém as conhece, nem elas umas as outras, embora todos se encontrem. Quando se tocarem, a colisão das delicadezas fará brotar o inominável.

Há mais mundo do que nossa percepção consegue captar



Há mais mundo do que nossa percepção consegue captar.

Deus (Oxalá, Alá ou que nome tenha, e que intuo olhando o horizonte pela minha janela, nos músculos cansados de dança ou amor, na gargalhada em companhia dos meus), por favor (pela dor, pelo pulsar do sangue, pela passagem do tempo que transforma os corpos mesmo após a morte - não há morte. Coisa sem nome, sem forma, sem começo, meio ou fim), me ajude, sempre, a me lembrar disso.

sábado, 20 de agosto de 2011

Seja invisível

É quando você sente todos os olhos pousando sobre você, quando seu mínimo gesto é interpretado e sua opinião considerada. É nesse momento em que o bom-senso está por um fio, e o ego inflado. Aí começa a derrocada do há de divino no ser.
A invisiblidade, o anonimato, a ignorância são dádivas. Só os grandes idiotas querem estar na berlinda, e mesmo estes, com uma mão no microfone e outra protegendo os ventrículos, se dão conta de que a morte é pública.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Ator




Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do cotidiano tornem um homem duro ou cínico o bastante para fazê-lo indiferente às desgraças e alegrias coletivas, sempre haverá no seu coração, por minúsculo que seja, um recanto suave no qual ele guarda ecos dos sons de algum momento de amor que viveu em sua vida.

Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingi-lo no pequeno núcleo macio de sua sensibilidade, e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa grotesca forma de autodestruição a que, por desencanto ou medo, se sujeita, e por aí inquietá-lo e comovê-lo para as lutas comuns da libertação.

Os atores têm esse dom. Eles têm o talento de atingir as pessoas nos pontos nos quais não existem defesas. Os atores, eles, e não os diretores e os autores, têm esse dom. Por isso o artista do teatro é o ator.

O público vai ao teatro por causa dos atores. O autor de teatro é bom na medida em que escreve peças que dão margem a grandes interpretações dos atores. Mas, o ator tem que se conscientizar de que é um cristo da humanidade e que seu talento é muito mais uma condenação do que uma dádiva. O ator tem que saber que, para ser um ator de verdade, vai ter que fazer mil e uma renúncias, mil e um sacrifícios. É preciso que o ator tenha muita coragem, muita humildade, e sobretudo um transbordamento de amor fraterno para abdicar da própria personalidade em favor da personalidade de seus personagens, com a única finalidade de fazer a sociedade entender que o ser humano não tem instintos e sensibilidade padronizados, como os hipócritas com seus códigos de ética pretendem.

Eu amo os atores nas suas alucinantes variações de humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no desespero de sua insegurança, quando ele, como um viajante solitário, sem a bússola da fé ou da ideologia, é obrigado a vagar pelos labirintos de sua mente, procurando no seu mais secreto íntimo afinidades com as distorções de caráter que seu personagem tem. E amo muito mais o ator quando, depois de tantos martírios, surge no palco com segurança, emprestando seu corpo, sua voz, sua alma, sua sensibilidade para expor sem nenhuma reserva toda a fragilidade do ser humano reprimido, violentado. Eu amo o ator que se empresta inteiro para expor para a platéia os aleijões da alma humana, com a única finalidade de que seu público se compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de um mundo melhor, que tem que ser construído pela harmonia e pelo amor. Eu amo os atores que sabem que a única recompensa que podem ter – não é o dinheiro, não são os aplausos - é a esperança de poder rir todos os risos e chorar todos os prantos. Eu amo os atores que sabem que no palco cada palavra e cada gesto são efêmeros e que nada registra nem documenta sua grandeza. Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica.

Plínio Marcos - 1986

Texto do livro Canções e Reflexões de um Palhaço, e é a ampliação de um monólogo do personagem Bobo Plin, da peça Balada de um Palhaço.





sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Preserve os metacarpos



Ao contrário do que eu gostaria de acreditar, do que as propagandas procuram vender, ou as novelas queiram incorporar, tenho presenciado diversas restrições ao amor.
Alguém bate à minha porta chorando porque os pais desconfiam de seu relacionamento homossexual, e lhe aplicam torturas chinesas para arrancar-lhe o nome de seu "aliciador". Outro está comoventemente apaixonado e é recíproco, mas vai se casar e não pode deixar de honrar o compromisso assumido. Três corações numa caixa de fósforos.
Há ainda quem esteja casado a anos, e precise lidar a esquizofrenia de seu par, que o acusa de não amá-lo. Quem seja conduzido e apanhado frente ao trabalho e censurado caso esteja conversando com qualquer espécie do sexo oposto. Há quem tenha medo de amar demais e, por isso, prefira terminar o relacionamento "enquanto é cedo". Quem tenha sido dispensado por telefone de um namoro de anos. Quem passe o dia esperando uma ligação que não vem. Quem pense nos filhos, e somente neles.
Há uma comoção geral e indiscriminada pela morte do amor ou sua impossibilidade de realizar-se.
Para não partilhar dos ritos funerais, eu me sento e olho tudo com o dedo na tomada. As minhas falanges todas já se perderam, mas o complicado mesmo é encarar a vida tendo apenas metacarpos pra me proteger.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Não pega bem prá mulher


(No século XXI, no estado de São Paulo)

Andar do lado de fora da calçada.
Isso priva o brutamontes de exercer seu equivocado senso protetor.
Pagar a conta.
Expõe para o macho alfa que a manutenção da caverna hipotética não depende só dele.
Entender mais do que eles sobre determinados assuntos.
Denota capacidade de avaliar as merdas que eles fazem e, consequentemente, dar-lhes um pé na bunda.
Não casar.
Mulher é propriedade, como assim, uma vaca à solta?!
Cumprimentar os amigos do sexo oposto com um beijo.
Sem-vergonha! Fica se exibindo pros homens das outras.
Gostar de sexo.
Põe em cheque o sonho da fadinha indefesa, que precisa de um mentor para orientá-la sobre o que, por que, por quem e quando sentir.
Falar palavrão.
Destrói o mito da pureza feminina, que produz anjos para sempre delicados e gentis
Sentar de perna aberta.
Uma moça que expõe a genitália assim... já viu, né?
Dar conta de qualquer serviço supostamente masculino.
Só pode ser sapatão.
Ser sapatão.
É porque não achou quem comesse direito. Isso é falta de pica!


segunda-feira, 25 de julho de 2011

"Microdrama" ou "Ácida"


(Ela 1, Ele 1, Ela 2, Ele 2, todos à mesa de um restaurante japonês. Se conhecem a pouco e, por isso mesmo, são simpáticos uns aos outros).

Ele 1 (para Ela 1): E o seu marido, como vai?

Ela 1 (timidamente): Nós não estamos mais juntos...

Ele 1 (indignado): Mas por que?!

Ela 1: Eu gostaria que a gente trocasse de assunto... (para Ele 2) Bonita camisa!

Ele 2: Ah, obrigado! Eu comprei numa loja daqui, não consigo me lembrar do nome.

Ela 2 (imediatamente): Sim, sim. Se eu não me engano, estava junto com você nesse dia.

Ele 1 (resoluto): As relações têm que se manter. Ele precisa vir para cá, conhecer seus novos amigos.

Ela 1 (sorrindo amarelo): Eu gostaria de trocar de assunto, tudo bem?

Ele 2: A sua camisa também é bem bonita.

Ela 1 (aproveitando o sorriso): Obrigada, eu ganhei da minha mãe.

Ela 2: Sabe, a minha mãe não consegue me agradar, sempre troco os presentes que recebo dela.

Ele 1 (animado): Quem sabe se ele vier te visitar, se passar um tempo aqui? Quem sabe então vocês reatem?! (veemente) Uma relação não termina assim.

Ela 1 (com irritação crescente): Eu REALMENTE prefiro não falar nesse assunto.

Ela 2: Sim, há tanto que se conversar, não é mesmo?

Ele 2 (para Ele 1): Certamente, por favor, não insista.

Ele 1: Não há possibilidade de vocês voltarem? Acabou, acabou?

(Pausa. Ela 1 segura o hashi na frente do rosto. Encara Ele 1, profundamente).

Ela 1 (grave, para Ele 1): É um palito para cada olho.

(Ele 2 e Ela 2 riem nervosos)

Ele 1: Você é um tanto ácida, não?

sábado, 23 de julho de 2011

Acidinha



Era um teatro, meia hora antes da peça começar. Eu estava sozinha num banco, no café, todos os outros ocupados, e ele pediu para sentar do meu lado. Tudo bem. Eu não conhecia ninguém na plateia do Gerald Thomas. Nem ele. Carioca, professor, História. Paulista do interior, professora, Teatro.



Perguntou como fazia para chegar na Arco Verde depois da peça, expliquei conforme pude. Eu precisava mesmo tomar o ônibus na Vergueiro e talz, podia esperar por ele. Ele decidiu que ia tomar o metrô, mas se eu quisesse, desviaria um pouco do caminho, me acompanharia até o ponto, e me esperaria embarcar.



Não sei se foram os cabelos compridos, os óculos, a cara de bonachão, ou qualquer coisa insuportavelmente masculina e protetora nele, mas eu disse "tranquilo", e fui entrando no teatro. Fiquei puta com o carioca metido, mais perdido que eu, generosamente me oferecendo a garupa (nunca a dianteira) do seu cavalo branco.



Uma hora depois, finda a exibição egoico-thomasiana, saí do prédio sem correr e sem demorar. Entrei com o cu na mão no zigue-zague de ruas que me levariam ao ponto de ônibus e esperei. Pensei em tomar um táxi, em ir até Paulista e lá procurar outro ônibus, em acender mais um cigarro, e todas essas coisas que deveriam enganar o fato de ser uma mulherzinha bem pequena, sozinha, num lugar escuro.


Já em casa, demaquilada, aquecida, e com a força de mil amazonas urbanóides, me ocorreu algo tão imbecil e sincero quanto as convicções adolescentes: não há homem (mulher, criança, animal ou extraterrestre) capaz de nos poupar do que nos atravessa.

terça-feira, 19 de julho de 2011

@#$%¨&*!



Estou de férias e morando numa cidade do interior. Seria ridículo e óbvio dizer do que não há pra se fazer aqui nas férias. Em contrapartida, há pessoas, e sua inventividade. Tenho coletado frases curiosas que surgem durante nossas conversas, e acho que algumas delas merecem publicação. Para cada um dos autores, um beijo carinhoso.

1. Tudo bem se a gente "trocar" de assunto?

2. É um prá cada olho (segurando hashi).

3. Você é ácida, né?

4. Quando eu não gosto de uma pessoa, eu não gosto nem do cachorro dela.

5. Quem nunca chorou sozinho na rua?

6. É tudo mentira! É tudo mentira! É tudo mentira! (filosofando sobre o mundo e tudo quanto há)

7. Ó lá: cabecinha de novo! Hahahaha!!! (observando a interpretação inacreditável de Regina Duarte)

8. É muito difícil largar essa vida de ser vagabundo.

9. Tô cansada demais para pensar na vida.

10. Acho que vou virar sapatão de novo.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Minha nova casa nova


Me sinto em casa de novo. Tive raiva, medo, e uma vaidade – tímida o suficiente para transmutar-se em bom-senso - de superar o que havia aqui antes de mim. Domei este espaço, ou ele me domou, e agora não preciso mais buscar no google os nomes das ruas para me localizar no pequeno raio de distância no qual se resolve a vida a pé. E descobri onde comer vegetarianemente.

Entendi, até onde se pode, o mistério alheio, e com alguns deles comungo em paz. Paz. Substantivo que se repete, talvez para ocultar certa covardia ante à surpresa. Sem surpresa e sem tédio, reconheço uma certa casa como minha. A bagunça minha de cada dia, para onde volto depois do trabalho. E o trabalho mesmo deixou de ser a única razão de eu estar aqui, embora muito de mim siga orbitando por ele.

Meu sobressalto durou quatro meses incompletos, tempo suficiente para aprender o que evitar para não me aborrecer, e para onde olhar quando busco por ternura. Já há pessoas importantes demais para o exercício de minha ternura.

Com sinceridade – ainda que sempre transitória e algo desconfiada – aceito esta como minha nova morada. E um pouco menos aquela, a quilômetros daqui, onde reside boa parte do meu amor. Não por falta do mesmo amor, mas por hábito. É aqui onde preciso ajeitar os sapatos, pagar as contas, fazer as unhas. Talvez por um mecanismo de regulação biológica, começo a amar esse punhado de coisas pelas quais me reconheço e os outros vão formando sua imagem de mim.

Seja como for, percebo que tenho uma maneira meio óbvia de estar só, e ela vem sempre embalada por ColdPlay. Muda a paisagem, os objetivos, o tamanho do cabelo e até da tolerância, mas o ouvido, o que se deixa entrar por ele, é sempre mais ou menos parecido. Morre-se um pouco a cada dia, e renasce-se de quando em quando, but everything´s not lost.

Para Dalila, Hugo, Gab, Nath, Keka...

terça-feira, 28 de junho de 2011

Alternativa fênix

Ter ciência de que viveu um amor é bonito na velhice, para contar uma boa história. Saber que viveu um amor, com o verbo assim, no passado recente, é fracasso. E por mais que não seja, essa é a única interpretação possível em um tempo considerável.

Um amor, mesmo, de dividir tudo, de não ter segredo, de estar à vontade em dizer para o outro que achou essa ou aquela pessoa bem gostosinha sem gerar crises de ciúme... Amor de gente grande sentada no sofá domingo à tarde, com os pés acomodados em coxas alheias. Isso tudo, quando parte, é um buraco negro de dor.

Tudo bem, você reage, vai ao samba com sua melhor camisa, senta no canto da mesa com aquele seu colega que tem a decência de não comentar, mas sabe que você está um caco. E você ri, conta piada ruim, enche a cara... e acorda de madrugada pensando que preferia um caixão de chumbo a esse peso no peito.

O fim de um amor assim nem fim é direito. Porque vocês se adoram e se ligam e vão ser amigos para o resto da vida. É aquele laço impossível de cortar, a pessoa que sabe o seu CPF de cor, e a quem você vai procurar quando se sentir miserável como agora. De repente, até, por causa de outra pessoa. Não de outro amor, que amor assim, com sorte, se vive uma vez a cada dez, vinte anos. Para muitos é um só na vida.

Esse tipo de amor é lacuna, é o vazio de não saber direito por que terminou, só que tinha que ter terminado. É um respeito sem educação pelos sonhos dele ou dela, e aos seus próprios. E um cagaço imenso de ficar igual ao pai e a mãe da gente, e não esquecer nunca daquela dobrinha perto do umbigo que ninguém mais tem.

Um amor desses, quando termina, nos deixa pensando em quem vai responder se ele ou ela perguntar se hoje é dia de lavar o cabelo. A falta de um amor desses não nos faz sentir heróis por sobreviver, mas idiotas se não tivermos mudado radicalmente depois dele. Esse amor só pode deixar a gente um tanto fênix.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A última imagem


Sobre velórios, eles são tenebrosos mesmo. Me lembro de, muito criança e pedindo ajuda com a palavra pouco familiar, dizer à minha mãe que não queria ser velada. Ela deve ter respondido, como qualquer adulto razoável – o que nós somos além disso? – que eu não pensasse naquilo por enquanto, mas que o velório era um jeito de os amigos e parentes terem uma última lembrança da gente.

Talvez eu já soubesse, meio sem querer, que não ficava à vontade com a ideia de que minha última imagem fosse pálida e endurecida, possivelmente arrumada com um cabelo que eu jamais usaria em vida.

E no caso de eu ter um fim violento, e precisasse de um caixão lacrado – outra palavra que aprendi no velório, e depois transpus para o universo das embalagens – as pessoas se lembrariam de mim como uma caixa de madeira? E se eu morresse junto com um monte de gente, ia ter que por plaquinha no meu caixão? Mãe?

Fiquei pensando nos meus vestidos até descobrir um com qual eu gostaria que pensassem em mim. Quando se é criança, é difícil projetar a morte para a velhice. Eu queria que as pessoas me lembrassem usando o vestido enquanto brincava, não daquele jeito estático e cercado de lamentações.

Ainda hoje odeio funerais – sim, há quem goste – e eles me deixam com um efeito colateral anárquico. Examino a minúcia das ações humanas e não vejo nelas o menor sentido. Depois passa, e eu acabo achando bem bom poder cruzar a rua e comprar pães frescos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

caco



e
quando
a
gente
se
sente
caco
de
gente
?

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Mais uma para a Lua



Ai, Lua redonda
tal como uma coroa de filho que me brotasse do sexo.
Sua presença no céu imenso
localiza o desejo do mundo em um só corpo,
latejando.
Por sua causa, todos os sentidos se aguçam,
e as narinas se desesperam constatanto hormônios em ebulição.
Não há frio que demova da pele
a insistência em querer-se nua,
com outra, outras, coladas a si.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

As obscenidades amadas

Imagem de Alyson Brandy

São 04:30. E se são 04:30 e não 16:30, suponho que não precise dizer que são 04:30 da manhã. Embora agora já esteja dito.

Eu não durmo. Tem dias, já. Na verdade, tem dias que eu durmo pouco, mas o negócio é que hoje não consigo. Tá foda. Tá nada. Foda é um treco acompanhado, e eu não durmo é de solidão mesmo, da braba.

Nem tem essa de deitar nos pés da cama, comprar lençol novo, tomar banho quente, chá de ervas “x”. Minhoca na cabeça é muita, e quando a gente deita elas saem pra passear. Depois vem a fome. As fomes. A da meia-noite, a das duas e quinze, a das quatro e tanto. Mais um pouco e dá para ir comer pastel na feira. Se tiver feira.

Você já pensou que pode sentir saudades de apertar uma bunda, um pau, uma tetinha no escuro? Não qualquer pau, bunda ou teta, nem qualquer escuro. As obscenidades amadas, no escuro de casa. Até sem vontade de trepar, só para tirar um sarro, conferir. Saber de novo a presença do outro com quilinhos a mais, barriguinha, careca e os cambaus.

Se você nunca pensou numa coisa dessas e até estranhou, te digo que sacanagem, mesmo a inocente, é uma coisa doída de lembrar. No seu lugar de acompanhado, eu tratava de ir apertando tudo o que passasse por mim. E se não passasse, agarrava.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Dor no peito, de intensidade contínua



dor no peito,
de intensidade contínua
explicável pelo excesso
de exercícios ou de cigarros.
não fossem os anos dedicados
a educar o gosto
se eu não me levasse
tão a sério
diria só "saudade",
e da mais chã:
do corpo do outro só ali,
dormindo perto

segunda-feira, 14 de março de 2011

Quase 26



O último fiapo dos meus 25
pende
com minha insistência
em não dormir
na ponta.
Hoje só vira amanhã
quando a gente
pisca comprido.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Baile

eu te exijo
com os olhos
sutilmente
e se você
me devolve
o olhar
acha mesmo
(até jura)
que essa exigência
está
não nos meus
olhos
mas no que
há de
mais urgente
em si

sábado, 15 de janeiro de 2011

Introdução ao segundo capítulo

Há hoje um consenso sobre inserção dos meios de comunicação de massa nos aspectos mais generalizados da vida, incluindo aqueles que se relacionam aos nossos valores e subjetividade. Os media detém a disposição de toda produção sígnica inerente ao homem. Eles passaram a regular a veiculação, criação e a legitimação da cultura. Não, claro, sem se expor a uma espécie de caos e imprevisibilidade daqueles conteúdos que não se deixam captar facilmente.

Conforme pontuado por Lypovetsky (2010), a cultura tornou-se moeda, e seu valor de troca é algo com que os Estados passam a se ocupar cada vez mais, dado que, também dela, depende sua hegemonia. Sob este ponto de vista, a cultura travestiu-se em “cultura-mundo[1]”.

Porém, longe de ser irreversível ou impossível de transpor, mesmo lançando mão de mecanismos que alcançam e saturam nossa percepção, a cultura-mundo tem sofrido interferências substanciais ao longo dos anos. Alguns exemplos estão na autonomia dos artistas, na criação de redes informais, e em sua resistência a um modo de organização que congrega mídia, arte e mercado. Estas são posturas que funcionam como uma espécie de ruído paralelo e desestabilizador.

Tratam-se, segundo Santos (2010), de emancipações sociais (no plural, porque diferentes umas das outras), que prevêem igualdade em operações cuja diferença pretende nos inferiorizar; e diferença, quando a igualdade tem por objetivo nos descaracterizar. O poder revolucionário da arte residiria em sua colaboração com este projeto[2].

Neste panorama, passamos entender a arte, e em especial a performance, como um fenômeno sobretudo comunicacional. Nos interessa sua habilidade em tecer conexões entre seus pares e, a partir destas conexões, produzir diferenças e igualdades em lugares e lógicas estabelecidos.

A partir deste deslocamento, nos debruçamos sobre o tema e, mais especificamente, sobre o trabalho de determinados artistas escolhidos, inegavelmente, segundo alguma afinidade estética ou de discurso. Todavia, estamos considerando também as estratégias que tais trabalhos utilizam para assegurar sua subsistência. A série “Estranho, um cara comum”, do performer Flávio Rabelo tem indícios do tipo de comunicação cara a esta pesquisa.




[1] Cultura-mundo significa fim da heterogeneidade tradicional da esfera cultural e universalização da cultura mercantil, que se apodera das esferas da vida social, dos modos de existência e da quase totalidade das actividades humanas. Com a cultura-mundo, alastra-se por todo o globo a cultura da tecnociência, do mercado, dos media, do consumo e do indivíduo com ela toda uma série de novos problemas, não só de âmbito global (ecologia, imigrações, crise económica, miséria do terceiro mundo, terrorismo, etc.), mas também existenciais. A cultura globalitária não é apenas um facto, mas, ao mesmo tempo, um interrogação profunda e inquieta sobre si mesma. É o mundo que se transforma em cultura e a cultura em mundo: é uma cultura-mundo (LYPOVETSKY, 2010, pp. 13-14).

[2] Trecho retirado de entrevista com o autor no site “O Globo”. A versão integral pode ser lida em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/07/23/boaventura-de-sousa-santos-fala-sobre-rap-global-310530.asp. Acessado em 12/01/2011