segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Ocupe-se (mas não consigo)



É crucial que se saiba: em cada brecha silenciosa do dia há a iminência de um perigo fatal. É preciso evitá-las cuidadosamente, inventar duas ou três ocupações,  e distendê-las no tempo, de modo que não haja como cair em si. Experimente pentear os cabelos sistematicamente, e por diversas vezes. Ajeite a gola com minúcia. Não se esqueça nunca de conferir as horas e, com espanto, alardear o compromisso perdido, ou por perder.
Caso a ameaça de estar consigo seja demasiado presente, com o telefone a postos, ligue para uma empresa  de serviços e dedique-se a conseguir, para ontem, aquele reparo/desconto/bonificação. Não desligue enquanto não vencer, pelo cansaço, pela argumentação, que seja; e lembre-se de parecer muito irritado.
Não facilite com as janelas, proteja-se dos horizontes: beneficie-se do ar condicionado. Por Deus, tenha cautela: para o dia ruir basta chegar em casa, sozinho ou acompanhado, e ter o descuido de perceber a poeira das horas acumulada nos móveis.  Ajuste a vigilância, um deslize e não terá algazarra chegue. Nem música ruím,  nem grito de gol, nem a aceitação unânime dos seus amigos virtuais: a poeira se deposita em nós, atrás dos olhos, naquele espaço em que nos sabemos nada.
Se você chegar a esse extremo descabido – prova máxima da sua incompetência - , é bem capaz de começar a pensar na vida, e pressentir obviedade de ser só. Pior: você saberá, como uma obsessão infantil, que solidão não é um estado póstumo, resíduo de algo que não está. Mas permanência.
Nesse ponto, lhe faltando o senso do ridículo, você se meterá a artista, filósofo, cozinheiro, amante ou qualquer atividade pouco prática, envolvendo alguns pares de incertezas. Então, tudo estará perdido. Para sempre, ou até o dia seguinte.
Atenção: se somente o “para sempre” lhe assusta, não ouse pensar no período da noite ao dia seguinte como suportável. E, muito menos, por um encadeamento simplório de ideias, na curta duração que separa um e outro como mal menor. Mantenha-se de posse do senso analítico e não deixe escapar o detalhe: mesmo nesse caso você terá dormido – sonhado! – miseravelmente.

sábado, 16 de junho de 2012

Sobre espartilhos com zíper e a morte do amor



Eu hoje fui a uma loja de lingerie. Queria um espartilho, com cinta liga, meias e tudo.
Acho que não é exagero dizer que, na maior parte das vezes, uma mulher quer um espartilho para usar com aquela pessoa pela qual tem carinho, com quem a intmidade já rendeu boas transas. Um espartilho tem a intenção de experimentar variações e, antes de tudo, criar um tempo-espaço outro com o nosso par/trio/roda.
O espartilho, não raro, vem acompanhado de um striptease. E, como não somos strippers, de alguma insegurança ou vergonha que vale passar pelo depois.
Não é nem de longe uma peça confortável, e a gente não usa senão para tirar. Melhor: para ser tirada. Isso envolve paciência, mergulhar no corpo alheio e voltar à superfície de quando em quando: divertir-se, deleitar-se. É um prelúdio caprichoso, e a graça é saber, desde sempre, no que vai dar.
Pedi um branco, porque vermelho, no meu estado seria ainda mais arrebatamento, e adoro preto, mas não para esse momento. A moça me trouxe dois modelos... com zíper (!), na frente!
Tive que reprimir a lágrima: estava dado mais um sintoma da morte do amor. Sim, porque tudo bem,  os amantes têm um objetivo claro. Mas não sei sobre maior prazer que inventar curvas, tomar atalhos, divagar no caminho até ele.
Sai de lá com as mãos vazias, e sem vontade de perguntar sobre aquele modelo "antigo" à mocinha que tinha me apresentado o zíper com tanto entusiasmo.
Já na calçada, disfarçando uma cara semelhante à de quem chupou limão, a música do Belchior (assim, brega mesmo, que o amor tem disso) ecoava em minha cabeça: "Prá eu ter tempo, tempo de me apaixonar..."

terça-feira, 12 de junho de 2012

Perplexas



Uma bruxa é uma fêmea - que, porventura, mora dentro de alguns homens também. Antena parabólica, satélite, captador universal.  O perigo dessas transmissões se dirige a ela, sobretudo. As fogueiras, mesmo as pós-modernas, não queimam além da casca. As bruxas estão em combustão perplexa, segundo a segundo, internamente, ante à vida. E as chamas são, justamente, o combustível de sua existência.  Verter sangue junto com as luas é caminhar ao avesso do sol, que escalda.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Instruções para lembrar de si


Quando vocês não estiverem mais juntos, você vai perceber que não está legal, e as coisas vão ser deixadas pelo chão. Camisetas, sapatos, meias, aquele livro pela metade, os tickets da última ida ao cinema. 
Até que em quaisquer três da tarde ou madrugada, você acorde num mar espalhado e intransitável de si. Não se assuste: são vestígios de quem passou um tempo se esquecendo de existir.
Mas atenção: nesse dia, imediatamente, comece a catar e a organizar tudo. Ponha as coisas nos seus devidos lugares - dê telefonemas - mesmo que nunca tenham estado lá.
Prometa que não mais vai deixar chegarem a esse ponto. Vista bolinhas, listras ou flores. Cantarole. Ou assovie, se lhe for menos penoso. E, acima de tudo, cumpra a promessa, ainda que nos primeiros dias você precise muito de chocolates.


domingo, 22 de abril de 2012

Domingo, antes do inverno



Há pouco comecei a ver um série de TV, na qual, quando se trata de evocar uma situação sombria, algum personagem, dos mais cativantes, diz, grave: "O inverno está chegando". Há um contexto assustador para que a frase tenha efeito na série. Mas, para mim, funciona na vida diária.
Nasci numa cidade quente e passei a infância tomando sorvete e perambulando de calcinha pelo enorme casarão onde vivíamos. Havia um termômetro na parede de um dos quartos, encimado por uma Nossa Senhora em relevo, já gasta. Quando o risquinho vermelho do termômetro chegava bem perto da santa, a gente podia lavar o cachorro e tomar banho de mangueira.
Nesse tempo, com 15° não se ia à escola, porque era um frio absurdo. E eu, invariavelmente, tinha febre, dor de garganta, de ouvido, e saudades de tomar sorvete.
Depois que a vida passou a não caber no casarão, houve uma noite em que experimentei 3° na rua, sem agasalho. Mas então eu não tinha vinte anos, e estava de braços dados com amigos tão ou mais bêbados. O mundo e todas as suas certezas era nosso. A gente ria, cantava e sabia tanto de um certo músculo bombeando vida em nós, que nem nos dávamos conta dela.
Foi perto dessa época que eu tive um dos meus maiores amores do mundo - são três, pelos quais, me sinto agraciada - , e o frio teve cheiro de sexo. Mais do que isso: o frio passou a ter uma pertinência nova porque o calor do outro, o nosso calor juntos, era tudo o que se podia querer.
Curiosamente, hoje sonhei com esse moço, com a mesma cara de anos atrás. Acordei em casa: um feliz apartamento de gente unitária. Tem uma pilha de louça na cozinha, uma bagunça civilizada de uns amigos que vieram ontem. A gente não bebeu a ponto de cantar alto ou andar de braço. Porque na nossa idade, a gente já se preocupa com o vizinho... e com o fígado.
O inverno está chegando e eu já tive a dor de garganta da vez. É preciso tirar as roupas pesadas do pacote e pôr prá lavar: o inverno, via de regra, tem cheiro de roupa antiga e pouco usada, carregada de lembranças da última vez que viu a cara da rua.
Um ou dois casacos contam histórias. Uma coleção delas me permite saber, de verdade, que não se morre de amor. Por isso mesmo, neste momento, tudo o que eu podia querer era um dos meus maiores amores do mundo, comigo, debaixo das cobertas. Então, seria bem bom encontrar aberto um lugar que entregasse comida.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Isso é arte?!

“Performance”, do inglês, está quase sempre atrelada ao “bem fazer” algo. E se conecta ao universo dos atletas, das máquinas, do desempenho sexual, do “show”. Por isso mesmo, há, entre os artistas da performance, quem busque por outros termos para se referir a ela. E quem milite para que essa nomeação seja entendida principalmente como algo referente à arte.

Ainda que se conquiste o ideal da performance subentendida como arte, sua amplitude abarca, do mesmo modo, distribuir papéis em branco nas ruas, travestir-se e dublar músicas numa boate, receber voluntariamente um tiro, construir e acoplar a si um terceiro braço, suspender-se por ganchos na pele, impor-se restrições vitais como passar um ano sem sair de casa e sem se comunicar, ou empreender rituais fetichistas de dominação e sujeição. Os exemplos e a diversidade se expandiriam tanto que me seria impossível terminar este texto.

O meu encantamento com a performance reside justamente neste paradoxo: ela não obedece a uma forma e, embora se possam detectar alguns dispositivos comuns às ações que se abrigam sob esse nome, seria ingênuo falar sobre uma “técnica” de performance. Ao mesmo tempo, e em decorrência desssa característica aberta, é comum que os artistas de performance sejam confrontados com formulações como “Isso é arte?”, “O que isso significa?”, “O que você quis dizer com isso?” ou “Mas isso até eu faço!”.

Além da irritação ou divertimento que estas frases podem causar, elas carregam uma série de concepções que a performance e a arte contemporânea em geral desestabilizam. O “isso” está pautado no bem fazer, na representação e linearidade do discurso que “quer dizer” algo “através” de algo, na concepção do artista como virtuose e, portanto, situado num patamar superior ao homem comum.

Estas frases nos permitem chegar mais perto não de uma definição, mas de um conjunto no qual a performance opera. Ainda que hajam processos criativos bastante rigorosos (e outros mais maleáveis), performar parece estar ligado a um modo de vida idiossincrático, de reinvenção a partir do sublinhamento daquilo que se entende por normalidade.

Neste fazer artístico, ressaltam-se traços do hábito que o tornam questionável. A performance cria uma realidade outra, na qual a lógica vigente não é senão a sua própria. No contexto, sim, “isso é arte”, mas enquanto firmada no jogo tácito entre o performer e o olhar – envolvimento e disponibilidade – daqueles a quem participa suas ações.