segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Lá em casa



Foi com a tia buscar os alicates de cutícula deixados para afiar. O homem atrás do balcão era um tipo falante, expansivo, simpático. Anunciou satisfeito: "Agora é só não deixar o marido usar eles pra cortar fio que duram bastante". A tia já separando o dinheiro respondeu, muito natural, como deve ser: "Lá em casa a gente não tem marido que é pra não ter esses aborrecimentos". O homem riu amarelo, constrangido dessa autossuficiência declarada. A tia não percebeu. Pagou e, de posse do pacote,  continuou o assunto com ela enquanto caminhavam de volta. Ela não prestou atenção na conversa. "Lá em casa" não era um lugar, mas as mulheres da família. Todas solteiras, uma divorciada. Os homens, ao contrário, casados a anos, mesmo que não exatamente felizes. Ela ruminando aquilo. Talvez fosse a insubordinação característica delas: todas agudas feito os alicates, e fortes. Ou sina, vai saber. Era ela também uma Pimenta. Uma tia em potencial. E os quase trinta anos ainda não davam conta de achar isso natural para si. Seria questão de tempo?

sábado, 7 de dezembro de 2013

Fazer da existência uma experiência estética


Allan Kaprow: Woman licking jam off a car

Preferir a sua à qualquer companhia.
Ter coragem para discordar, inclusive, dos seus pares.
Mesmo muito a fim, desistir de transar se isso for contra a sua autopreservação.
Não se culpar pela casa desarrumada em períodos de trabalho intenso.
Responder educadamente a ataques.
Fazer da existência uma experiência estética.
Estabelecer relações de coleguismo com seu pais.
Despedir-se sem enfatizar a tristeza.
Não deixar de fazer algo por falta de companhia.
Deleitar-se com as tantas possibilidades sexuais além da penetração.
Usar as roupas que quiser, sem encanar com o que elas realçam ou escondem.
Fazer da existência uma experiência estética.
Perdoar (a si, principalmente).
Dizer com todas as letras e diretamente para x(s) envolvidx(s) quando algo te fere.
Não desculpar-se se não houver motivos.
Desculpar-se quando houver motivos.
Empreender o exercício da tolerância.
Fazer da existência uma experiência estética.
Evitar o convívio com aquelxs que você não pode tolerar.
Abandonar discussões quando elas se tornarem uma questão de "ganhar" ou "perder".
Dizer palavrões cotidianamente.
Não gritar a não ser por felicidade ou contentamento.
Fazer da existência uma experiência estética.
Empenhar-se em aceitar o tempo dxs outrxs.
Agir de acordo com o seu tempo.
Ter SEMPRE uma boa playlist ao alcance.
Mover o corpo por puro prazer.
Arranjar tempo e maneiras de "fazer nada".
Empenhar-se em não participar de maus comentários sobre alguém ausente.
Presentear-se de quando em quando com sua comida preferida.
Fazer da existência uma experiência estética.
Oferecer ajuda.
Aceitar ajuda.
Dormir quantas horas quiser ao menos uma vez por semana.
Fazer da existência uma experiência estética.
Chorar quando essa for a única maneira de livrar-se da angústia.
Manter contato regular com quem você gosta, mesmo à distância.
Masturbar-se.
Assistir ao nascer e ao por do sol.
Ter em quem confiar.
Não ressentir-se se alguém prefere não estar contigo.
Fazer da existência uma experiência estética.
Visitar lugares, culturas e hábitos que não os seus.
Devolver o que tomar emprestado.
Não falar enquanto estiver irritadx.
Manter-se curiosx.
Não faltar ao comprometer-se com algo.
Fazer da existência uma experiência estética.
Num diálogo, olhar para a pessoa com quem conversa.
Desconfiar dos discursos pacíficos.
Agradecer.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Espero, sinceramente, que a gente se foda

Foto: Spencer Tunick

Estou cansada. Virando três madrugadas consecutivas para dar conta de uma existência que se fundamenta no fazer teatral. Preparo aulas, viajo para assistir a um espetáculo que dirigi, volto. Vou à Reitoria exigir que não acabem com um curso de Artes Cênicas criado às pressas e sem condições, mas que, justamente pela vontade inquebrantável de meus pares, resiste e cria produções as vezes não tão elaboradas, mas que tateiam com afinco essa vastidão do fazer para ser visto.
            Nada de heroico nessa perspectiva. É assim porque o teatro não se estabelece de outra forma, não admite gente morna, meia fase. É um povo apaixonado, tesudo, e eu mais uma entre tantos.
Estou cansada pra caralho (caralho: genital comum a toda espécie. Quem não tem, foi concebido com participação de um), e queria dormir. Mas a mais de uma hora tem uma ruga na minha testa e um desconforto que me atravessa inteira. 
          Hoje um colega expôs com sua turma parte do resultado de um Laboratório de Interpretação. Um dos dispositivos para a criação de cena foi a nudez. Em seus diversos aspectos: despir-se dos pudores em relação a si, mais do que tirar a roupa.
Coincidentemente, em outro canto e planeta, também hoje, um aluno de uma instituição em que trabalhei foi expulso. E não só expulso. Foi autuado com um boletim de ocorrência, registrado por um professor, em que consta “atentado ao pudor”. Porque estava nu em cena, e se masturbava. Cena essa previamente autorizada pelo coordenador do curso.
Aqui, o público parecia lidar com um fenômeno extraterrestre: perguntou aos atores qual era a sensação de estar nu em cena. Como se nunca tivesse estado nu no banho, durante o sexo, na sauna, no carnaval. Como se nunca tivesse sido índio, visitado praia nudista. Como se tivesse nascido de roupa, de mãe vestida. O público perguntou aos atores como foi dizer aos pais que ficariam nus. Como se os pais não tivessem estado nus, aos olhos - toques, beijos - uns dos outros para conceber estes mesmos meninos sobre o palco.
Eu sentada na poltrona do teatro, sentada agora na almofada com o computador no colo, com o mesmo corpo. Essa forma pela qual se dá a minha e tantas outras existências no mundo. Me ponho a pensar em quão antigo é o Wooodstock e em como foi que as coisas caminharam de forma a tornar, de novo e outra vez, a exposição do corpo em tabu.
O que teremos feito do amor livre e dos ideais hippies – hoje tão tacitamente risíveis – para que o sexo e tudo o que se relaciona ao corpo, à maneira da Idade Média, tenha se tornado sinônimo de imundície, perversidade, libertinagem? Que músicas teremos tocado através dos tempos para que o deus que dança, do também antigo Nietzsche, tenha se retirado do nosso convívio?
Eu – o corpo que sou – mantenho involuntariamente a ruga na testa ao imaginar o aluno expulso. Em como lhe tratarão os colegas, a família, o bando, a polis, a matilha, a sociedade. Essa mesma que faz vistas grossas ao turismo, ao assédio sexual. Que não vê o alto escalão aliciar com seu dinheiro às crianças das classes miseráveis, ao mesmo tempo em que tem a obsessão de manter virgens e puras às suas filhas. Ou pelo menos a aparência delas.
 Talvez o aluno expulso se convença, ele próprio, de que fez algo condenável. Talvez ele, de artista, se converta ao mais novo bastião da moralidade. E então, que saudável uso teremos feito de nossas atribuições enquanto professores, e de nossos dispositivos de ensino! Tal como os jesuítas, teremos catequizado mais um bom selvagem aos nossos moldes civilizados. Que esse negócio de ficar pelado e relacionar-se despudoradamente com os deuses só pode ser coisa do capeta, né?

... São Bom Capeta, Rogai por nós, os fundamentalmente vestidos!

domingo, 10 de novembro de 2013

a noite mais quente do ano


é a noite mais quente do ano ela disse e quem se importa que sejam duas da manhã quando a luz do poste está queimada e tudo o que você quer é dormir para que amanhã seja outro dia sabe-se lá como mas não mais este melhor que este diferente deste amanhã amanhã amanhã os homens cantam e conversam e fazem apostas enquanto trocam a lâmpada e quem os culparia por isso se você estivesse trabalhando na noite mais quente do ano certamente trataria de fazê-la mais feliz não há nada de romântico nisso fora das páginas do pequeno príncipe e mesmo lá é de uma beleza cruel imagine o acendedor de lampiões como alguém com olheiras perpétuas e que engraçado a sua imagem é quase assim no espelho mas hoje você sorri para ela invés de pensar em alguma desaprovação e que direito mesmo a gente tem de entrar assim na vida dos outros bagunçar tudo e então ir embora atrás de um novo emprego uma boca nova menos tédio e que direito o outro tem mesmo de nos oferecer essa ilusão de que é exatamente o que queremos ao menos nesse momento e que seja esse momento de novo e outra vez e amanhã de novo amanhã amanhã amanhã a vida nada mais é do que uma sombra que anda de quantas sombras terá sido feita a luz do poste durante sua vida útil vida útil ninguém se importa com as vidas inúteis a não ser à medida em que atrapalham o bom andamento das úteis e não há mais nada que arrancar para diminuir o calor já pensou se a gente pudesse tirar a pele tanta coisa se resolveria ou se poriam outras em seus lugares porque a ignorância não morre é maior que macbeth maior que a vida desse corpo diminuto e empapado de suor hoje seria impossível dormir de conchinha a gente idealiza e fabula sempre esquece que viver junto tem dessas coisas na verdade a gente é ensinado a buscar desesperadamente por outro corpo é quase pecado viver só e se estamos bem assim é porque temos algum problema segundo todo mundo que é um ente esmagador e cruel será mesmo que estamos dispostos a tanta abdicação no momento o desejo era só de ventilador outro banho não adiantaria e os homens ainda estão lá tudo bem então reformulando o desejo era de ventilador e de um sonífero ou de uma incrível tolerância a isso tudo no exato momento dessa ideia vem a culpa porque anestesiar-se também é estar ausente e é por isso que o mundo está assim e crianças homessexuais são destratadas na sala de aula e os comediantes oferecem bananas aos negros e as mulheres apanham e são mortas por seus cônjuges ok começando de novo o desejo é permanecer no mundo e alerta mas dormir bem mesmo que seja a noite mais quente do ano como ela disse e os homens estejam cantando e fazendo apostas enquanto trocam a luz queimada da rua em frente a esse quarto habitado pelo pequeno corpo empapado de suor para que amanhã amanhã amanhã ele possa tomar todas as decisões cabíveis no dia que não é mais hoje mas que virá embebido na memória dela

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Sobre o direito à raiva


Há um boi – com couro, pêlos, chifres e sua morosidade característica – comprimido entre as paredes internas do que chamo eu. Tenho corrido alguns quilômetros por dia e guardado dieta restritiva na esperança de fazê-lo recrudescer à inexistência. Falo sobre ele com quem não temo parecer ridícula. Eu sou ridícula. Reconhecer essa condição alarga minha humanidade.
Narro o fim do meu relacionamento para olhos carinhosos e acolhedores, com a paciência e a cumplicidade dedicada a quem precisa assentar o luto. Faço questão de dizer como foi tudo muito carinhoso, sem mágoas.
A versão que teço busca refutar a sensação de fracasso que vem na esteira do término. A mesma que necessita ser perscrutada atentamente até sabermos que nos foi vendida como subproduto da propaganda de margarina.
As horas vão tratando de decantar, no amálgama que vai cá dentro, alguns pontos de orientação que me levam a lugares tanto mais concretos que estes onde o rompimento é uma sonata triste e melodiosa, composta a dois, sobre o amor impraticável.
Um senso contraditório se esparrama por onde cheguem as extensões do meu corpo. O desejo de sentir raiva é proporcional à impressão de que isso não é “justo”. Afinal, talvez porque liberados de alguns pudores de envolvimento, erigimos uma despedida inacreditavelmente doce. Quiçá mais do que ousamos enquanto juntos.
O amor não é só redentor, apocalíptico. Na verdade, ele se sustenta mais na brandura que nas grandiosidades hollywoodianas que reforçam nossa educação romântica. Em algum momento – em muitos deles – os amantes vão se fazer mal. É esse o medo captado num brevíssimo segundo em que nos vemos vulneráveis: a ciência de que a dor causada pelo Outro há de ser mais assertiva e avassaladora, porque ele é conhecedor de nossas desproteções.
 E não é possível livrar-nos e ao Outro desse medo, por exemplo, com um “eu te amo” – por favor, não é a isso que essa frase serve. Aliás, ela não serve para nada: é uma inutilidade delicada. É mais sincero (e poético) não perdermos de vista que amar é prosseguir apesar disso. Amar é, num só tempo, machucar e afagar o Outro no que lhe for essencial. E deixá-lo nos fazer o mesmo.
O Outro nos faz mal com seu amor. Mesmo sem ter a intenção, e a recíproca é verdadeira. Mas então, se nos aborrecemos com algo provocado por seu amor/ódio, cumpre ao Outro nos roubar o direito à raiva. E deve fazê-lo se desculpando, reconhecendo suas falhas, nos impedindo de brigar.
Essa amabilidade conciliadora nada tem a ver com o afeto que o faltoso sinta por seu interlocutor. Não que este não exista. Mas é, antes, uma necessidade de autopreservação. Porque o causador da raiva não quer ser visto como “uma pessoa má”, nem lidar com as consequências de sua falta – uma avalanche de impropérios, o choro compulsivo, a imposição do desprezo a partir do silêncio.
É assim que algo inerentemente violento como um rompimento amoroso passa a ser narrado como gentil: com a cuidadosa supressão da raiva pelo carinho extraordinário destravado pelo fim. Como gritar com quem te afaga?
Olhar a situação por esse prisma não torna a fossa edificante, não ameniza a falta, não desfaz a consciência de não ser a namorada – “Neguinha”, “Amadinha”, “Coisa Minha” – de quem amo. Amo: o amor não vem com botão liga e desliga. Não desenha a possibilidade de enfiar a mão pela goela e arrancar o boi num único gesto, sem que ele me mate no momento em que o casco de sua última pata toque o sininho de minha garganta.
Quando muito, colocar as coisas nesses termos oferece algum alento: de tudo o que não tenho mais, essa raiva é minha. É o amor encruado e eu preciso me servir dela até que o mesmo amor passe de fase e me seja possível admitir de novo a figura do Outro, já recomposta e liberta do que não foi.

Enquanto isso, conto os grãos de minha próxima refeição e mantenho os tênis sempre prontos.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Mãe?


Ouço alguém chamar "mãe". É comigo, eu sei. Tem mil caras esse chamado, e mil vozes... Mil idades. Os meus filhos e filhas ao meu redor.  Respondo "Oi...?", doce e algo desatenta ou ocupada, como a minha mãe, esperando o resto da frase que inicia com um apelo mágico. Atendo mentalmente e me dou conta de que eles (ainda) não existem, senão cá dentro. No desejo intenso que baliza uma série de escolhas, engajamentos, despedidas. "Oi...?" Eu amo você, criatura anterior à existência. E a sua imaterialidade não te torna nunca menos presente.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

5 Ludmílicas



I
Toca o interfone perto da meia noite. Maldigo os moleques bêbados do bar da esquina e engatilho um palavrão. Em segundos reconheço a voz de um desses amigos andarilhos que dispensam a bobagem de ligar avisando que vão aparecer. Passo um café. É tanto assunto para por em dia que vamos de um a outro por associação ou memória, sem esgotar nenhum. Quando nos despedimos sabemos muito pouco sobre o que houve no tempo em que estivemos longe. Mas o amor é uma clara certeza.


II
Na rodoviária, uma jovem lê a revista Veja. Sou tomada por um estrondoso senso heroico, salto as mesas que nos separam e aproveito o ensejo do almoço para rasgar com os dentes essa fatalíssima arma embrutecedora. Faço um mosaico de baboseiras multicoloridas e, limpando a boca com um guardanapo, digo, solene, à moça "Não precisa me agradecer". Tudo isso enquanto baixo o olhar para o meu entediante prato de salada pré-preparada e rumino a desesperança na juventude. Na minha, inclusive.


III
Para os males quietos que se encrustam do lado de dentro e recusam-se à verbalização, o remédio é dançar para além dos limites do ridículo, como se eles não fossem o foco de nossa agonia. Então, quando eles tentarem arremeter à nossa consciência triste, com sorte, já terão vazado pelos poros junto com o suor.



IV
Quando cruzou os portões do campinho havia em seus olhos a satisfação muda de quem avançou alguns metros no rotineiro exercício de corrida. Alegre, quase fez corro com o Elvis Presley que cantava em seu fone de ouvido. Ocorreu-lhe que cada vez mais se dedicava a atividades solitárias, e sentia prazer nelas. Alguns passos em direção à autossuficiência, a mesma que lhe doía nos amigos que não telefonavam. Entristeceu.



V
Desde que vira a depiladora caçar  pontinhos pretos em sua virilha e fazê-los irromper com a satisfação de uma parteira, a vida mudou para sempre. Agora a solidão das pausas entre uma ideia e outra estava remediada pela minuciosa busca dos pêlos encravados, tão introspectivos quanto ela.


domingo, 16 de junho de 2013

Apelo aos bons companheiros


Antes de qualquer coisa é necessário dizer que esse texto não pretende integrar o “Clube da Luluzinha” e se colocar contra os homens simplesmente porque eles pertencem ao sexo masculino. Há tempos me preocupa que a denúncia ao patriarcado se transforme em ojeriza aos homens, indiscriminadamente.
Em contrapartida, é bom esclarecer que entendo o feminismo como absolutamente necessário e a igualdade entre os gêneros e – por que não a indistinção entre eles? – como algo a que se dedicar cotidianamente.
A questão de que me ocupo é outra. Dessas cabeludas, que habitam os entremeios. Talvez seja a detecção de uma perspectiva tão melancólica quanto real: nós, mulheres tendemos a não termos pares (masculinos).
Essa conclusão algo apocalíptica não se refere ao amor romântico, “para sempre” e banhado em declarações exuberantes. Parto da premissa ideal de que, com muito empenho, tenhamos conseguido subverter nossa educação para Cinderela e sejamos capazes de compreender os romances, as telenovelas, os filmes e os happy ends em geral como fábulas.
Falo de uma condição palatável, na qual relacionar-se tem a ver, por exemplo, com equacionar desejos e faltas, maus-humores, euforias, manias, preguiças, calos, apelidos carinhosos, medos, projeções, jeitos peculiares de sentir, falar, olhar.
A maturidade, os rompimentos e a consolidação das carreiras profissionais são alguns dos motivos pelos quais o amor passa de “a coisa mais importante na vida” para “uma das coisas importantes” a que nos dedicamos. Não há angústias sobre isso. Ao contrário: a idealização é que é carrega impedimentos. Mas mesmo aí, nesse patamar, o amor parece impraticável.
Isso porque, em algum ponto, os casais esbarram numa espécie de limbo: nós, mulheres, nos livramos da obrigação de acompanhar nossos companheiros se isso implicar em abrir mão da trilha que escolhemos. Porém, nossos companheiros, de antemão, não nos acompanham em nossas buscas. E aqui chegamos à inquietação que produz esse texto.
As mulheres têm sido a parte do contrato que tende à manutenção, à acumulação e à estabilidade. Entre outras coisas, porque somos nós a engravidar: detemos a prerrogativa de “produzir” um corpo a partir do nosso. Para tal, tendemos a buscar por algum índice – ainda que mínimo – de bem-estar físico-psíquico-material. E é bom que isso seja conquistado o quanto antes. Afinal, os óvulos não permanecem saudáveis para sempre.
Já os homens moram no tempo: ficam mais atraentes conforme a idade e a experiência. Devem perseguir seus objetivos, mesmo que isso implique em alguma variação de suas condições de vida. Deles se espera uma vivacidade tácita que lhes lance no mundo e os faça aprender a lidar com as situações mais improváveis. Constituir família, para eles, não é uma urgência, mas um descanso, um depois.
Certo? Não exatamente. Para ambos os sexos.
O fato é que há um crescente empoderamento das mulheres no que tange ao cuidado de si e à fluência de uma vida plena. A maternidade e a fundação familiar deixam de ser o sacramento da realização feminina e se fundam como possibilidades entre muitas. Nós temos nos colocado em abertura, explorado uma série de limites que se referem desde à nossa sexualidade até trocar a resistência do chuveiro.
Esse panorama que faria de nós “as” companheiras, na acepção mais deliciosa do termo, configura-se como uma conquista solitária. Porque enquanto isso, os homens parecem querer cada vez menos.
Eles não estão a fim de ir ao cinema, de visitar os amigos, de testar um novo caminho, outra maneira de fazer a mesma coisa. Estão parados, e se aborrecem se insistimos em que se movam. O “não” é sua primeira resposta e, se mudam de ideia, quase sempre, o fazem pelo cansaço mais do que pela força de nossos argumentos. Eles não estão dispostos a discutir. “Acham tudo deja vu, mesmo antes de ver”.
Isso não é um projeto de ridicularização do masculino, é um lamento. Assim como eles lamentam que em algum ponto a gente desista. E bem, por amor próprio, cansaço ou insubordinação, a gente acaba desistindo mesmo.
 Um amigo, ciente de sua inércia habitual, me confidenciou dia desses: “Fico pensando nas mulheres incríveis que passaram pela minha vida e eu não fui capaz de acompanhar”. Da mesma forma, bom amigo, nós sentimos muito que vocês não tenham se dignado a olhar para fora com suficiente curiosidade.

Claro, há algum contentamento em desafiar-se a fazer sozinha uma série de coisas, principalmente porque algumas delas, até bem pouco tempo, não eram facultadas às mulheres. Mas a autossuficiência, ao menos para mim, está longe de ser uma perspectiva feliz.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Sobre a necessidade de celebrar o esdrúxulo


Por que, afinal, ocupar-se de um evento dedicado a uma linguagem algo flutuante e que deixa a formulação “retorno financeiro” com ares de piada? Em outras palavras, para que fazer Festivais de Apartamento e, mais ainda, para que fazê-los, deliberadamente, sem fomento de quaisquer instituições?
Porque é possível.
E, uma vez que esse tipo de argumento seja tão geral que sirva como justificativa às mais delinquentes atrocidades cometidas pela raça humana, se coloca a obrigação de explicar.
Os Festivais de Apartamento são efêmeros, pequenos e gozam de uma saudável inexistência. Entre uma convocatória e outra, jazem felizes no esquecimento enquanto exibimos no blog o registro da edição anterior. Cada edição tem a duração de uma noite apenas, e nós não somos capazes de abrigar muito mais do que 25 ações. Estes eventos se realizam em casas de pessoas que se dispõem a recebê-los, não em galerias. Não há eleição curatorial: todo inscrito, independentemente de em que ponto se encontre de sua trajetória performativa, torna-se participante no ato da inscrição, e é inteiramente responsável pelas demandas de sua ação. E não, não há ajuda de custo, hospedagem, alimentação ou traslado. Obviamente, não emitimos certificados, nem dispomos de chancela.  Ou seja: somos uma grande celebração do esdrúxulo, das coisas que não cabem, do que não faz sentido dentro de uma lógica assertiva.
Antes. Não se trata de se contrapor ao formato dos editais, ainda que eles existam em quantidade menor que nossa capacidade criativa, e que não contemplem a diversidade dela. Ainda que seja necessário contar com certa obtusidade de algumas bancas ou escrever de modo que haja brechas em que pesem o gosto do curador e o que desejamos fazer de fato.
Menos ainda se trata de entender a arte e o artista fomentados como menores, menos pungentes ou qualquer blábláblá chique e eufemista que denote inferioridade. E, por favor, absolutamente, não se postula um revival hippie que pretenda desfazer-se dos bens materiais, viver de amor em algum lugar paradisíaco e dar adeus à crudelíssima sociedade capitalista.
Embora haja o entendimento de que ser artista é um modo de ser no mundo quase sempre inquieto e desestabilizador do status quo e, por isso mesmo, embebido de determinada ética e posicionamento político, ainda não perdemos a dimensão de que é necessário, antes de qualquer coisa, encontrarmos meios de nos sustentar. Sim, nós ainda não estabelecemos tamanha conexão com o Cosmos que tenhamos transcendido a matéria e as necessidades básicas da vida. E queremos ainda e, legitimamente, fluir aquelas que estão além do básico.
Os Festivais de Apartamento não foram inscritos em editais porque, até o momento de suas doze edições, foi possível que se portasse assim. E só isso é o suficiente para alimentar a utopia de seus organizadores. Quantas coisas se conhecem no mundo cuja diretriz primeira não seja a lucratibilidade? Exatamente. Aquelas de que somos saudosos porque impraticáveis em sua maioria.
Esse formato não diz respeito somente à geração de um território para empreender ações performativas, embora venha contemplando essa solicitação de modo relativamente satisfatório. Nos os realizamos assim por percebermos nessa forma de existir algumas premissas que nos são caras.
 Há um feixe de vontades e concreções implicado no fazer Festival de Apartamento no qual se localiza, por exemplo, nosso desejo de trocas reais com nossos pares, o que só é possível se mantivermos um número de participantes humanamente visitáveis. Além do que, reside nesse formato nossa resistência ao apelo apoteótico do mundo, nossa agonia com a vida telemática, nosso desdém pela postura do artista “iluminado”, detentor da tecnicidade e do código que o colocam no pedestal da genialidade, nossa tentativa de descentralizar a arte, expressa na itinerância dos Festivais. E tantas outras coisas de que nos vemos carentes ou enfadados e tentamos exercitar na organização desses eventos.
Nada de novo se afirma nesse enunciado, assim como ele não pretende ser a solução definitiva para as questões que orbitam pelo fazer performativo. É só uma forma que encontramos de manter viva a utopia. Nisso temos sido endossados por artistas que, cientes ou não desse levante, têm se deslocado às próprias expensas em direção a umas noites que parecem suspender o estabelecido.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Amor do outro por si.



De repente você, de cara limpa e olheira funda, no final de mais um dia de trabalho, se dá conta de que mudou de hábitos. Não vai ao samba. E está certo porque, afinal, amanhã o dia começa mais cedo do que nunca. Mas a verdade é que você, devagar e sem perceber, abandonou o senso de solteirice crônica. Não fosse isso e a essa hora lá estaria você, gastando as chinelas. E el@ nem te pediu para não ir. Nem pediria. Você não estaria assim, tão entregue, a alguém que te pedisse um troço desses. 
Você não vai por causa de um novo cuidado consigo. Esse de dormir direito, não fumar, manter-se sóbri@. Ao mesmo tempo em que deixa de lado alguns outros caprichos. Você agora não se preocupa mais com o fato de não caber no manequim 36. Aquele no qual você sempre entrou justo e para o que se manteve vigilante com a comida. Se convence mesmo de que no 38 fica mais bonit@. Volta a cozinhar em casa, se martiriza por ter passado tanto tempo comendo na rua. Faz tudo com pouco sal, pouca gordura e prepara bolos e sobremesas mil, cantarolando. Porque a vida há de ser doce. E os amigos merecem uma paga por te ouvir falar tantas vezes no nome del@ enquanto te visitam.
Quando não, você desenvolve ainda algum tipo de responsabilidade partilhada. Algo como “eu preciso cuidar de mim porque o outro sofreria se me passasse algo de mau”. Um amor por si cuja rota atravessa a existência del@. É justamente nesse ponto que os trejeitos, os gestos, as expressões do outro tomam a forma de um povo primevo, recém-descoberto, que nunca teve contato com o homem branco. Ou de uma nebulosa, uma nova espécie marinha, um método revolucionário para desenvolver a criatividade: qualquer coisa que se estude com dedicação, voluntariosamente.
De quando em quando, pode haver momentos em que você não se reconheça e busque, afoit@, pelo fio que te trouxe até esse estado bobo e desprotegido. Como foi mesmo que as suas defesas baixaram tanto e você passou a reparar piedos@ na velhinha da esquina, solitária e rotineira, no portão, usando meias grossas toda seis da tarde? Deve ter sido aquele sorriso, ou a satisfação de uma ideia partilhada. Não. Foi daquela vez em que os corpos se encaixaram até te devolver a sensação de ser um, no corpo da mãe.
Você constata um modo crisálida, no qual as paixões atrofiam por não suportar a suspensão de viver nesse enleio do eu-el@. Ou brotam, coisa distinta. Menos intensas e mais reais, variando numa valsa em que os amantes se plasmam e se afastam. Ainda reflexiv@, você pensa que a incerteza é talvez uma deusa caprichosa e divertida, e não importa muito para onde ela caminhe. Na sua idade nada adolescente, perceber-se nesse estado já é suficientemente feliz.

sábado, 23 de março de 2013

Pequeno inventário das pessoas coisa

Eu, apaixonada por Cortàzar

Pessoas morango


Tenho bem próxima uma pessoa morango. Porque pequena, mas porque sem pele.  Não é preciso descascar, nasceu sem qualquer coisa que a separe do mundo – tão  suscetível à mistura com ingredientes diversos –, não tem onde esconder o que sente.  Os seus afetos são expressos no vermelho encravado de suas curvas. Quase um coração. Há quem não suporte.
Sofre o desvio de não se reconhecer por completo senão na relação com os outros. Sazonal, sua constância depende do cultivo alheio. E se houver descuido, torna-se azeda, verde e dura. Nestas ocasiões, dificilmente se lhe pode devolver a doçura ou a cor. Talvez passe anos assim, esquecida de quem seja. Se, porém, a partir de uma empresa ineditamente sua, conseguir se lembrar, é possível que não haja no mundo lugar para ser tão radiante, e ela se converta num pequeno sol. Talvez então ela seja alguma outra coisa, parecida com uma pessoa morango.
Tem a propriedade irritante de livrar-se facilmente do cabo, desligar-se. Dedica algum tempo voltada sabe-se lá se para dentro da caixa ou para o oco de si. Esse mesmo que ela não pode conhecer, senão partida ao meio.

 Pessoas rosa


É bom que você conheça as pessoas rosa, e então se dedique a encontrar suas próprias estratégias para lidar com elas, que são lindas. Principalmente as vermelhas. Talvez por essa característica em particular, as pessoas morango tendam a pensar nas pessoas rosa como suas semelhantes. Mas a verdade é que as pessoas rosa são exclusivas, e às morango, sem pele, resta ferir-se em seus espinhos ou contemplá-las a uma distância segura.
Pessoas rosa são exuberantes, decorativas, e funcionam como o que para impressionar. Ninguém pode ficar indiferente às pessoas rosa. De modo que, pela sua curta duração – pessoas rosa costumam optar por venenos que lhes intensificam à mesma medida que lhes matam tanto mais rápido – suscitam paixões, simpáticas ou repelentes.
Têm sua maior parte no topo, também onde são macias e convidativas. Possivelmente isso tenha mesmo motivado a evolução dos insetos voadores, fartos de morrer percorrendo-as a partir da haste. Assim também as pessoas rosa passaram a notá-los. Elas, que estão sempre olhando para cima, para longe, para o que ainda não têm e, naturalmente, conquistarão.
Somente na velhice, já abertas, se reclinam sobre seus pesares. É quando, se pegas chorando, dirão se tratar de uma gota de orvalho. Tornam-se mais humanas, talvez. Nesta fase, não é possível resistir a elas. São menos belas mas ainda mais apaixonantes, reflexivas da dor que causaram e da sua própria.

 Pessoas arame

As pessoas arame serão úteis a vida toda. Resistirão às situações mais difíceis, se dobrarão e desdobrarão de forma a servir o seu entorno nas mais impensáveis demandas. E, obviamente, bradarão orgulhosas o quão cansadas se sentem.
Quem tem o privilégio de uma pessoa arame em sua vida dificilmente conhecerá o desamparo. Elas não costumam ter repentes, não são afeitas às mudanças – só se aproxime for capaz de respeitar isso.
Elas têm ideias sólidas, decantadas através dos anos, e se divertem com os que tentam desestabilizá-las. As pessoas arame utilizarão seus argumentos cirurgicamente, de modo que as discussões se esgotem brevemente e ao opositor, aturdido, só lhe sobre agradecer pela perspectiva apresentada.
Pessoas arame têm uma só cor, invariavelmente, cinza. Se quiser tê-las próximas, por favor, não faça disso uma questão, nem, em absoluto, lhes solicite que expressem a si. A menos que esteja tentando fazê-las se quebrar. Então, você precisará do auxílio de ferramentas pesadas. Mas, se quer saber, não consigo me lembrar algo mais triste que ver uma pessoa arame, sempre tão digna, em estado de perturbação.

quarta-feira, 13 de março de 2013

looks like a passivona: um dia na (triste) pele de Marco (in)Feli(z)ciano.


Embora algumas mídias insistam em fazer parecer que sim, não há novidade em dizer sobre a insatisfação gerada pela figura de Marco Feliciano frente à Comissão de Direitos Humanos.
Entre as mais diversas manifestações a este respeito, parto da seguinte imagem em direção à ação looks like a passivona: um dia na (triste) pele de Marco (in)Feli(z)ciano.



A “irreverência” internauta, ainda que bem intencionada, determina papéis (ativ@ - passiv@) nas relações homossexuais, e equipara o homofóbico assumido a uma posição que seria algo depreciativa nas relações homoafetivas.
looks like a passivona: um dia na (triste) pele de Marco (in)Feli(z)ciano é justamente uma busca pela dissolução dos papéis e, mais ainda, dos gêneros como fundadores de identidade. Quer, ainda no território da ludicidade, visitar a triste figura de Marco (in)Feli(z)ciano, a quem acredito crônica e irrecuperalvelmente infeliz: em que outro estado se conceberia tal visão de mundo?
Para esta ação, utilizei as mídias ordinárias, cunhadas pelo coletivo couve com sabão (Ludmila CastanheiraThaíse Nardim e Rodrigo Emanoel Fernandes). Estas são quaisquer meios, cujos custam tendam a zero e sirvam ao propósito de convidar a uma fluência poética da vida. Dessa vez, as mídias ordinárias propõem questões de gênero.
Assim, levo a triste figura do deputado para a rua, para a vida, para fluir. Quem sabe se ele fosse mais feliz?
As imagens forma feitas por Nathalie Abreu e William Priante, e podem ser vistas abaixo:









 











 




 Agradecimento: Anelissa Fructuoso e Carlos Agostinho.


terça-feira, 5 de março de 2013

Prece muscular





Por todas as coisas que não sei, e àquelas a que dou o direito de permanecer incógnitas.  Às tão indesejadas lacunas, pausas e suspensões.  Ao gesto que se perde sem se completar, às frases que ficam na iminência de se concluir, a tudo o que poderia ter sido. Ao inominável que se esgueira de madrugada, por entre as cobertas em direção ao tórax.
Pelas declarações ensaiadas que não pude ou não quis pronunciar em respeito ao silêncio alheio, perdido entre os fios de cabelo e os cílios mornos, sonolentos. Pela família que não fomos, e pela que conseguimos ser. Pela frustração das posições designadas a partir da dança hierárquica. Pelo medo, pelo toque recuado ante ao respeito das entidades eternas.
Pela sobra, pela falta, pela indefinição. Pelo estado antes da queda, antes do salto, antes do passo para longe do que entendemos sermos nós. Pelo choro sufocado, pelo constrangimento, por todas as vezes em que deixei de ser. Pelo erro, pela decepção, pelo entendimento tácito do tempo e do lugar das coisas.
Pelo grito. Pelo gozo e pelo arrependimento do grito. Pelas feridas abertas, curadas e latentes. Por aquilo de que retirei o encanto em minhas explorações infindáveis. Pelas malas feitas, o aborto da missão e pela perda. Pela presentificação do nada, pelo tédio. Pela ausência, por buracos cavados bem fundo, tão fundo quanto o esquecimento. Pela irrupção das lembranças em domingos quentes.
Pela fenda, pela exigência do que pulsa em vir à tona. Pelo que brota sem pedir licença.  Pelo ainda não e pelo não mais. Pelo agora que não posso captar nem dizer o que seja. Por Von Trier, pelo desfile das imagens que não se conectam a nada, a não ser a algo muito distante a que não sabemos catalogar. Pela moça de tardinha em seu vestindo azul, se esvaindo no asfalto tremeluzente sem dizer a que veio.
Pela morte do deus, que  nos faz tão patéticos. Pelo tempo, pelas rugas no rosto de minha avó e o feto que (ainda não) cresce em minha barriga, pelo desejo e ilusão dos ciclos terminados. Pelo riso amarelo, pela exceção à regra, pela falha e a invenção, por tudo o que nos torna mais humanos. Minha prece muscular.


sábado, 19 de janeiro de 2013

Duerme negrito



Eu não gosto de dormir sozinha. É como se houvesse qualquer coisa  gosmenta e verde embaixo da cama. Assim, bem característica dos  trashes anos 80. Ou como se  a cama inteira só para mim tornasse evidente o quão pequena eu sou . Logo, facilmente engolível por monstros escondidos em cantos insuspeitos.
Depois vem aquela sensação de “sozinha na cidade” que não passa nem com o som da estupidez que alguns carros bradam na madrugada. Também estes motoristas vão dormir sozinhos. Talvez eles nem saibam, mas essa é sua forma de protesto. Cada um se manifesta como pode.
Um dia alguém acreditou que cantiga de ninar ajudaria a trazer sono se falasse sobre a cuca ou o bicho papão.  Dormir sozinha desperta o meu boi da cara preta em sua versão adulta: adornado de ansiedades e desconfortos mil.
Por isso eu não durmo. Não antes de o sol sair, ou de os olhos arderem, ou de não haver mais ninguém on-line. Não antes de pensar na vida até solucionar na mente todos os nós dessa existência insone. Imagino diálogos longuíssimos. Devia escrevê-los, mas não: estar insone durante as férias não deve ser produtivo. Pode mesmo causar um desequilíbrio no cosmos.
Também penso um punhado de mão grande, repleto de besteiras frescas enquanto não durmo. Quanto mais sono, mais desconexas as ideias. Um amigo notívago se diverte com esse meu estado semi alucinado. Quando nos visitamos, assistimos a filmes “z” enquanto não dormimos. Combinam com a atmosfera.
Tenho uma almofada em formato de fusca que ganhei em meu vigésimo sétimo aniversário.  Eu já a vesti com uma camiseta de namorado, embebida no perfume dele, na esperança de dormir em paz. Vai ver é só por isso que a gente admite crescer: para poder trocar o urso de pelúcia por pele. Pele amada. Com cheiro, calor e ainda por cima uns cravinhos prá cutucar.
Já pensou se resolvem comercializar? Pele amada com cheiro e cravos. Faria um sucesso tremendo e custaria os olhos da cara – seriam eles moeda de troca? –em várias versões: em diferentes temperaturas, morena, branca, negra, amarela, vermelha, pintadinha ou xadrez. Cobertores de pele amada. Cobertores de orelha. Comercializáveis.