sábado, 23 de março de 2013

Pequeno inventário das pessoas coisa

Eu, apaixonada por Cortàzar

Pessoas morango


Tenho bem próxima uma pessoa morango. Porque pequena, mas porque sem pele.  Não é preciso descascar, nasceu sem qualquer coisa que a separe do mundo – tão  suscetível à mistura com ingredientes diversos –, não tem onde esconder o que sente.  Os seus afetos são expressos no vermelho encravado de suas curvas. Quase um coração. Há quem não suporte.
Sofre o desvio de não se reconhecer por completo senão na relação com os outros. Sazonal, sua constância depende do cultivo alheio. E se houver descuido, torna-se azeda, verde e dura. Nestas ocasiões, dificilmente se lhe pode devolver a doçura ou a cor. Talvez passe anos assim, esquecida de quem seja. Se, porém, a partir de uma empresa ineditamente sua, conseguir se lembrar, é possível que não haja no mundo lugar para ser tão radiante, e ela se converta num pequeno sol. Talvez então ela seja alguma outra coisa, parecida com uma pessoa morango.
Tem a propriedade irritante de livrar-se facilmente do cabo, desligar-se. Dedica algum tempo voltada sabe-se lá se para dentro da caixa ou para o oco de si. Esse mesmo que ela não pode conhecer, senão partida ao meio.

 Pessoas rosa


É bom que você conheça as pessoas rosa, e então se dedique a encontrar suas próprias estratégias para lidar com elas, que são lindas. Principalmente as vermelhas. Talvez por essa característica em particular, as pessoas morango tendam a pensar nas pessoas rosa como suas semelhantes. Mas a verdade é que as pessoas rosa são exclusivas, e às morango, sem pele, resta ferir-se em seus espinhos ou contemplá-las a uma distância segura.
Pessoas rosa são exuberantes, decorativas, e funcionam como o que para impressionar. Ninguém pode ficar indiferente às pessoas rosa. De modo que, pela sua curta duração – pessoas rosa costumam optar por venenos que lhes intensificam à mesma medida que lhes matam tanto mais rápido – suscitam paixões, simpáticas ou repelentes.
Têm sua maior parte no topo, também onde são macias e convidativas. Possivelmente isso tenha mesmo motivado a evolução dos insetos voadores, fartos de morrer percorrendo-as a partir da haste. Assim também as pessoas rosa passaram a notá-los. Elas, que estão sempre olhando para cima, para longe, para o que ainda não têm e, naturalmente, conquistarão.
Somente na velhice, já abertas, se reclinam sobre seus pesares. É quando, se pegas chorando, dirão se tratar de uma gota de orvalho. Tornam-se mais humanas, talvez. Nesta fase, não é possível resistir a elas. São menos belas mas ainda mais apaixonantes, reflexivas da dor que causaram e da sua própria.

 Pessoas arame

As pessoas arame serão úteis a vida toda. Resistirão às situações mais difíceis, se dobrarão e desdobrarão de forma a servir o seu entorno nas mais impensáveis demandas. E, obviamente, bradarão orgulhosas o quão cansadas se sentem.
Quem tem o privilégio de uma pessoa arame em sua vida dificilmente conhecerá o desamparo. Elas não costumam ter repentes, não são afeitas às mudanças – só se aproxime for capaz de respeitar isso.
Elas têm ideias sólidas, decantadas através dos anos, e se divertem com os que tentam desestabilizá-las. As pessoas arame utilizarão seus argumentos cirurgicamente, de modo que as discussões se esgotem brevemente e ao opositor, aturdido, só lhe sobre agradecer pela perspectiva apresentada.
Pessoas arame têm uma só cor, invariavelmente, cinza. Se quiser tê-las próximas, por favor, não faça disso uma questão, nem, em absoluto, lhes solicite que expressem a si. A menos que esteja tentando fazê-las se quebrar. Então, você precisará do auxílio de ferramentas pesadas. Mas, se quer saber, não consigo me lembrar algo mais triste que ver uma pessoa arame, sempre tão digna, em estado de perturbação.

quarta-feira, 13 de março de 2013

looks like a passivona: um dia na (triste) pele de Marco (in)Feli(z)ciano.


Embora algumas mídias insistam em fazer parecer que sim, não há novidade em dizer sobre a insatisfação gerada pela figura de Marco Feliciano frente à Comissão de Direitos Humanos.
Entre as mais diversas manifestações a este respeito, parto da seguinte imagem em direção à ação looks like a passivona: um dia na (triste) pele de Marco (in)Feli(z)ciano.



A “irreverência” internauta, ainda que bem intencionada, determina papéis (ativ@ - passiv@) nas relações homossexuais, e equipara o homofóbico assumido a uma posição que seria algo depreciativa nas relações homoafetivas.
looks like a passivona: um dia na (triste) pele de Marco (in)Feli(z)ciano é justamente uma busca pela dissolução dos papéis e, mais ainda, dos gêneros como fundadores de identidade. Quer, ainda no território da ludicidade, visitar a triste figura de Marco (in)Feli(z)ciano, a quem acredito crônica e irrecuperalvelmente infeliz: em que outro estado se conceberia tal visão de mundo?
Para esta ação, utilizei as mídias ordinárias, cunhadas pelo coletivo couve com sabão (Ludmila CastanheiraThaíse Nardim e Rodrigo Emanoel Fernandes). Estas são quaisquer meios, cujos custam tendam a zero e sirvam ao propósito de convidar a uma fluência poética da vida. Dessa vez, as mídias ordinárias propõem questões de gênero.
Assim, levo a triste figura do deputado para a rua, para a vida, para fluir. Quem sabe se ele fosse mais feliz?
As imagens forma feitas por Nathalie Abreu e William Priante, e podem ser vistas abaixo:









 











 




 Agradecimento: Anelissa Fructuoso e Carlos Agostinho.


terça-feira, 5 de março de 2013

Prece muscular





Por todas as coisas que não sei, e àquelas a que dou o direito de permanecer incógnitas.  Às tão indesejadas lacunas, pausas e suspensões.  Ao gesto que se perde sem se completar, às frases que ficam na iminência de se concluir, a tudo o que poderia ter sido. Ao inominável que se esgueira de madrugada, por entre as cobertas em direção ao tórax.
Pelas declarações ensaiadas que não pude ou não quis pronunciar em respeito ao silêncio alheio, perdido entre os fios de cabelo e os cílios mornos, sonolentos. Pela família que não fomos, e pela que conseguimos ser. Pela frustração das posições designadas a partir da dança hierárquica. Pelo medo, pelo toque recuado ante ao respeito das entidades eternas.
Pela sobra, pela falta, pela indefinição. Pelo estado antes da queda, antes do salto, antes do passo para longe do que entendemos sermos nós. Pelo choro sufocado, pelo constrangimento, por todas as vezes em que deixei de ser. Pelo erro, pela decepção, pelo entendimento tácito do tempo e do lugar das coisas.
Pelo grito. Pelo gozo e pelo arrependimento do grito. Pelas feridas abertas, curadas e latentes. Por aquilo de que retirei o encanto em minhas explorações infindáveis. Pelas malas feitas, o aborto da missão e pela perda. Pela presentificação do nada, pelo tédio. Pela ausência, por buracos cavados bem fundo, tão fundo quanto o esquecimento. Pela irrupção das lembranças em domingos quentes.
Pela fenda, pela exigência do que pulsa em vir à tona. Pelo que brota sem pedir licença.  Pelo ainda não e pelo não mais. Pelo agora que não posso captar nem dizer o que seja. Por Von Trier, pelo desfile das imagens que não se conectam a nada, a não ser a algo muito distante a que não sabemos catalogar. Pela moça de tardinha em seu vestindo azul, se esvaindo no asfalto tremeluzente sem dizer a que veio.
Pela morte do deus, que  nos faz tão patéticos. Pelo tempo, pelas rugas no rosto de minha avó e o feto que (ainda não) cresce em minha barriga, pelo desejo e ilusão dos ciclos terminados. Pelo riso amarelo, pela exceção à regra, pela falha e a invenção, por tudo o que nos torna mais humanos. Minha prece muscular.