sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Espero, sinceramente, que a gente se foda

Foto: Spencer Tunick

Estou cansada. Virando três madrugadas consecutivas para dar conta de uma existência que se fundamenta no fazer teatral. Preparo aulas, viajo para assistir a um espetáculo que dirigi, volto. Vou à Reitoria exigir que não acabem com um curso de Artes Cênicas criado às pressas e sem condições, mas que, justamente pela vontade inquebrantável de meus pares, resiste e cria produções as vezes não tão elaboradas, mas que tateiam com afinco essa vastidão do fazer para ser visto.
            Nada de heroico nessa perspectiva. É assim porque o teatro não se estabelece de outra forma, não admite gente morna, meia fase. É um povo apaixonado, tesudo, e eu mais uma entre tantos.
Estou cansada pra caralho (caralho: genital comum a toda espécie. Quem não tem, foi concebido com participação de um), e queria dormir. Mas a mais de uma hora tem uma ruga na minha testa e um desconforto que me atravessa inteira. 
          Hoje um colega expôs com sua turma parte do resultado de um Laboratório de Interpretação. Um dos dispositivos para a criação de cena foi a nudez. Em seus diversos aspectos: despir-se dos pudores em relação a si, mais do que tirar a roupa.
Coincidentemente, em outro canto e planeta, também hoje, um aluno de uma instituição em que trabalhei foi expulso. E não só expulso. Foi autuado com um boletim de ocorrência, registrado por um professor, em que consta “atentado ao pudor”. Porque estava nu em cena, e se masturbava. Cena essa previamente autorizada pelo coordenador do curso.
Aqui, o público parecia lidar com um fenômeno extraterrestre: perguntou aos atores qual era a sensação de estar nu em cena. Como se nunca tivesse estado nu no banho, durante o sexo, na sauna, no carnaval. Como se nunca tivesse sido índio, visitado praia nudista. Como se tivesse nascido de roupa, de mãe vestida. O público perguntou aos atores como foi dizer aos pais que ficariam nus. Como se os pais não tivessem estado nus, aos olhos - toques, beijos - uns dos outros para conceber estes mesmos meninos sobre o palco.
Eu sentada na poltrona do teatro, sentada agora na almofada com o computador no colo, com o mesmo corpo. Essa forma pela qual se dá a minha e tantas outras existências no mundo. Me ponho a pensar em quão antigo é o Wooodstock e em como foi que as coisas caminharam de forma a tornar, de novo e outra vez, a exposição do corpo em tabu.
O que teremos feito do amor livre e dos ideais hippies – hoje tão tacitamente risíveis – para que o sexo e tudo o que se relaciona ao corpo, à maneira da Idade Média, tenha se tornado sinônimo de imundície, perversidade, libertinagem? Que músicas teremos tocado através dos tempos para que o deus que dança, do também antigo Nietzsche, tenha se retirado do nosso convívio?
Eu – o corpo que sou – mantenho involuntariamente a ruga na testa ao imaginar o aluno expulso. Em como lhe tratarão os colegas, a família, o bando, a polis, a matilha, a sociedade. Essa mesma que faz vistas grossas ao turismo, ao assédio sexual. Que não vê o alto escalão aliciar com seu dinheiro às crianças das classes miseráveis, ao mesmo tempo em que tem a obsessão de manter virgens e puras às suas filhas. Ou pelo menos a aparência delas.
 Talvez o aluno expulso se convença, ele próprio, de que fez algo condenável. Talvez ele, de artista, se converta ao mais novo bastião da moralidade. E então, que saudável uso teremos feito de nossas atribuições enquanto professores, e de nossos dispositivos de ensino! Tal como os jesuítas, teremos catequizado mais um bom selvagem aos nossos moldes civilizados. Que esse negócio de ficar pelado e relacionar-se despudoradamente com os deuses só pode ser coisa do capeta, né?

... São Bom Capeta, Rogai por nós, os fundamentalmente vestidos!

domingo, 10 de novembro de 2013

a noite mais quente do ano


é a noite mais quente do ano ela disse e quem se importa que sejam duas da manhã quando a luz do poste está queimada e tudo o que você quer é dormir para que amanhã seja outro dia sabe-se lá como mas não mais este melhor que este diferente deste amanhã amanhã amanhã os homens cantam e conversam e fazem apostas enquanto trocam a lâmpada e quem os culparia por isso se você estivesse trabalhando na noite mais quente do ano certamente trataria de fazê-la mais feliz não há nada de romântico nisso fora das páginas do pequeno príncipe e mesmo lá é de uma beleza cruel imagine o acendedor de lampiões como alguém com olheiras perpétuas e que engraçado a sua imagem é quase assim no espelho mas hoje você sorri para ela invés de pensar em alguma desaprovação e que direito mesmo a gente tem de entrar assim na vida dos outros bagunçar tudo e então ir embora atrás de um novo emprego uma boca nova menos tédio e que direito o outro tem mesmo de nos oferecer essa ilusão de que é exatamente o que queremos ao menos nesse momento e que seja esse momento de novo e outra vez e amanhã de novo amanhã amanhã amanhã a vida nada mais é do que uma sombra que anda de quantas sombras terá sido feita a luz do poste durante sua vida útil vida útil ninguém se importa com as vidas inúteis a não ser à medida em que atrapalham o bom andamento das úteis e não há mais nada que arrancar para diminuir o calor já pensou se a gente pudesse tirar a pele tanta coisa se resolveria ou se poriam outras em seus lugares porque a ignorância não morre é maior que macbeth maior que a vida desse corpo diminuto e empapado de suor hoje seria impossível dormir de conchinha a gente idealiza e fabula sempre esquece que viver junto tem dessas coisas na verdade a gente é ensinado a buscar desesperadamente por outro corpo é quase pecado viver só e se estamos bem assim é porque temos algum problema segundo todo mundo que é um ente esmagador e cruel será mesmo que estamos dispostos a tanta abdicação no momento o desejo era só de ventilador outro banho não adiantaria e os homens ainda estão lá tudo bem então reformulando o desejo era de ventilador e de um sonífero ou de uma incrível tolerância a isso tudo no exato momento dessa ideia vem a culpa porque anestesiar-se também é estar ausente e é por isso que o mundo está assim e crianças homessexuais são destratadas na sala de aula e os comediantes oferecem bananas aos negros e as mulheres apanham e são mortas por seus cônjuges ok começando de novo o desejo é permanecer no mundo e alerta mas dormir bem mesmo que seja a noite mais quente do ano como ela disse e os homens estejam cantando e fazendo apostas enquanto trocam a luz queimada da rua em frente a esse quarto habitado pelo pequeno corpo empapado de suor para que amanhã amanhã amanhã ele possa tomar todas as decisões cabíveis no dia que não é mais hoje mas que virá embebido na memória dela